sexta-feira, 14 de outubro de 2011

TV paga x TV aberta: Quem (de fato) ganha com a Lei 12.485?

Venício Lima *

“Mudanças na regulação das comunicações são necessárias, mas precisam ser realistas, sem contaminações ideológicas dirigistas. Um bom exemplo é o PL 116, que regula o mercado de TV por assinatura. Após longa negociação entre todos os interessados, o projeto foi aprovado em instância final no Senado.” Editorial, O Globo, 22 de setembro de 2011

No dia 12 de outubro, completou-se um mês que a Presidenta Dilma Roussef sancionou o PLC 116 (antigo PL 29) e o transformou na Lei n. 12.485 que “dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado”. Trata-se de uma lei complexa que, depois de longa tramitação no Congresso Nacional, iniciada ainda em 2007, havia sido aprovada no Senado Federal no dia 16 de agosto.

Muito já foi dito e escrito sobre o tema. Especialistas comprometidos com a democratização das comunicações têm elogiado a Lei e até mesmo afirmado que aqueles que não a celebram “ainda não entenderam as mudanças que ocorrem no mundo e vivem no passado”. Todavia, dúvidas importantes persistem, o debate continua necessário e algumas questões não podem ser ignoradas, inclusive a relação da Lei com o inadiável marco regulatório para as comunicações.
 

Para se compreender a Lei e algumas de suas questões polêmicas

1. Um dos objetivos da Lei 12.485 é unificar a legislação sobre a TV paga, independente da tecnologia utilizada. Até aqui existiam legislação e/ou regulamentos diferentes - e até mesmo conflitantes - para as diferentes modalidades, isto é, cabo ótico; satélite (Direct-to-Home ou DTH) e micro-ondas (Multipoint Microwave Distribution Services ou MMDS).

2. A nova Lei, libera completamente a participação do capital estrangeiro antes permitido para as operadoras por DTH e MMDS e apenas limitado no cabo (a 49%). A justificativa é estimular a competição e, segundo defensores da Lei, oferecer “novas opções de conteúdo audiovisual de qualidade e melhores serviços, por menores preços”.

Esse é o primeiro ponto polêmico. Brechas na regulação anterior já possibilitavam a presença do capital estrangeiro em proporções maiores do que a nominalmente permitida na TV a cabo. Além disso, como se trata de um setor estratégico, não deveria haver algum tipo de proteção ao capital nacional? Haverá incentivo real à competição permitindo-se a entrada no mercado das teles que são oligopólios globais? Pode-se falar em competição quando ela ocorre entre uns poucos oligopólios? Os preços dos serviços atualmente oferecidos por estes oligopólios (telefonia fixa e móvel) não estão entre os mais elevados do planeta?

3. Defensores da Lei destacam a distinção que ela estabelece entre os diferentes elos da “cadeia produtiva” da TV paga, vale dizer: produção, programação, empacotamento e distribuição. É a primeira vez que isso acontece no Brasil e, diz-se, o futuro aponta para a necessidade de se separar a regulação da distribuição daquela da produção de conteúdos audiovisuais. Alega-se, por exemplo, que na América do Norte, em alguns países da Europa e na nossa vizinha Argentina, a TV paga já supera a TV aberta. Esse é outro ponto polêmico.

Os
 últimos dados disponibilizados pela ANATEL indicam que, em agosto de 2011, a TV paga chegava a 11,6 milhões de domicílios, ou seja, a 38,3 milhões de brasileiros ou cerca de 20% do total da população. A densidade (assinantes por 100 domicílios) média dos serviços de TV Paga é de 19,4, mas treze estados estão abaixo dela e há unidades da federação, como o Piauí, onde a densidade é de apenas 4,3. Ademais, em cada 100 TVs pagas ligadas nos oito principais mercados brasileiros, mais de 60 sintonizam os canais de TV aberta na maior parte do tempo [agosto de 2011].

Não nos esqueçamos, todavia, que o mercado de TV paga não é nada desprezível. Em 2010, seu faturamento bruto atingiu R$ 1,011 bilhão. Isso representou cerca de 4% do total da verba destinada à publicidade no país (Projeto Inter-Meios).

Supondo que a TV paga, de fato, seja o destino pré-determinado para a maioria da população brasileira, consideradas as imensas diferenças de renda ainda existentes no país, em quanto tempo teríamos aqui uma situação semelhante, por exemplo, à Argentina (cerca de 50% da população)? Não conheço (e não encontrei) as projeções da indústria, mas suponho que ainda vá demorar, se é que vai acontecer.

Se este raciocínio estiver correto, não faz sentido celebrar uma Lei por efeitos que ela ainda não pode ter no que se refere à TV “consumida” por mais de 80% da população (sem incluir aqueles muitos que a assistem na TV paga). De fato, a Lei 12.485 não se aplica à TV aberta (salvo, por óbvio, nas referencias, diretas e/ou indiretas, que a ela se faz no texto legal).

Pela Lei 12.485, as empresas radiodifusoras, produtoras e programadoras não podem atuar diretamente na distribuição de conteúdos da TV Paga, mas podem controlar até 50% do capital das prestadoras de serviços de telecomunicações. Já essas últimas, não podem prestar serviços de radiodifusão de sons e imagens, produção e programação, e sua participação em empresas com essas finalidades está limitada a 30%.
 

Alguns estão fazendo uma leitura dessa norma como se ela fosse um bem-vindo primeiro controle da “propriedade cruzada” na mídia brasileira. Na prática, todavia, ela significa, por exemplo, que a TV Globo (aberta) continuará produzindo e distribuindo conteúdo e também continuará sócia [em até 50%] da SKY (americana) e da NET (mexicana). Já a Telefónica de Espanha, por exemplo, não poderá produzir conteúdo e se quiser ser sócia de uma empresa de radiodifusão estará limitada a 30%.

Quem se beneficia com essa regra até o hipotético dia em que a TV Paga ultrapassar a TV aberta no país? Na verdade, a regra funciona como reserva de mercado da produção e distribuição de conteúdo na TV aberta para as atuais empresas de radiodifusão.

E mais. A lógica do capital levará, mais cedo ou mais tarde, às empresas de telefonia a pressionar pela sua entrada também na produção de conteúdo. Ou farão isso “de fora prá dentro”, isto é, produzirão em estúdios em outros países e distribuirão aqui (o que a Lei não impede). Neste caso, voltaríamos à questão do item 1, acima: não seria o caso de se proteger a “indústria” audiovisual brasileira?

4. A vigência dos artigos 16º ao 18º do Capítulo V que trata de proteção “Do Conteúdo Brasileiro” está limitada (1) pelo artigo 21º que contempla o relaxamento das normas, a critério da ANATEL, diante de “comprovada impossibilidade de cumprimento”; e (2) pelo artigo 41º que prevê o término da vigência doze anos a partir da promulgação da Lei. Vale dizer, a partir de setembro de 2023, não mais valerão as exigências, por exemplo, de: três horas e meia de programação nacional por semana no horário nobre; em cada três canais dos “pacotes” comercializados, um terá que ser brasileiro; ou metade do conteúdo nacional terá de ser de produção audiovisual independente.

5. A Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM) solicitou à Presidenta Dilma o veto dos parágrafos 1º, 5º, 7º e 8º do artigo 32 da Lei. Por quê? Eles vedam “a veiculação remunerada de anúncios e outras práticas que configurem comercialização de seus intervalos, assim como a transmissão de publicidade comercial” e prevêem que “em caso de inviabilidade técnica ou econômica”, a critério da ANATEL, as operadoras fiquem desobrigadas de transmitir os chamados “canais públicos de utilização gratuita”, isto é, comunitários, legislativos, universitários, educativos, culturais, dentre outros.

A Presidenta Dilma não atendeu à solicitação da ABCCOM.

6. Para alguns “liberais” que repudiam qualquer tipo de interferência do Estado, as “disposições retrógradas” da lei – válidas apenas para os próximos 12 anos! – são: (1) o estabelecimento de cotas para produtores nacionais (inexpressivas 3h30 por semana quando se considera que no 1º substitutivo do projeto original previa-se exatamente o dobro deste tempo e/ou quando se compara aos 50% exigidos em países da Europa); e (2) o papel atribuído à ANCINE que expedirá os certificados de produção nacional ou independente para o que de fato merecer essa classificação.

Lições possíveis
Vale registrar que não só o senso comum, mas também teorias vigentes na Ciência Política, nos ensinam que uma das melhores maneiras de se identificar os interesses em jogo em determinada decisão é verificar como se manifestam sobre ela os principais atores envolvidos.

A epígrafe deste artigo aparece em editorial do jornal
 O Globo que começa elogiando as privatizações do governo FHC; desqualifica os “governos populistas” da Venezuela, da Bolívia, do Equador e da Argentina pelas “experiências desastrosas” no campo das comunicações; condena as propostas da 1ª. CONFECOM; e, por fim, elogia a aprovação do PLC 116, considerado “realista” e livre de “contaminações ideológicas dirigistas”. 

Não estaria aí uma boa indicação de alguns interesses que estão sendo atendidos e de quem (de fato) ganha com a Lei 12.485?

Por fim, não podemos nos esquecer (1) que o critério fundamental para avaliação de qualquer legislação aplicável ao setor de comunicações deve ser
 sempre se ela possibilita o aumento da participação de mais e diferentes vozes no debate público; e (2) que a Lei 12.482 regula um setor importante, mas relativamente pequeno, do enorme campo que deverá ser abrangido por um marco regulatório voltado para a positivação do direito à comunicação no Brasil.

A ver.
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Venício A. de Lima  é professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.


Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa no dia 14 de outubro de 2011

sábado, 8 de outubro de 2011

CDES Estaduais: outro caminho para os Conselhos de Comunicação

Venício Artur de Lima *
O Correio Braziliense publicou recentemente matéria sobre decisão do Governo do Distrito Federal de criar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Distrito Federal (CDES-DFD) [cf. “Sociedade chamada à discussão”, 13/9/2011, Cidades, p.24].

A referência é o CDES nacional, criado pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, para
“assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes específicas, e apreciar propostas de políticas públicas, de reformas estruturais e de desenvolvimento econômico e social que lhe sejam submetidas pelo Presidente da República, com vistas na articulação das relações de governo com representantes da sociedade". CDES estaduais já foram criados e funcionam nos estados de Alagoas, Bahia, Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul (cf.http://www.cdes.gov.br/conselhos-brasil.html).

O CDES-DF, presidido pelo governador, terá 80 conselheiros por ele convidados, sendo que 26 representantes do próprio governo, 20 personalidades e intelectuais, 18 empresários e 16 líderes de movimentos sociais. Para seu funcionamento os conselheiros se organizarão em Câmaras Setoriais que serão definidas após a instalação do CDES.
 

O exemplo do RS
No Rio Grande do Sul, o CDES-RS (cf.
 http://www.cdes.rs.gov.br/), criado em janeiro de 2011, instituiu, em maio, a Câmara Temática da Cultura e Comunicação (CTCC), justificada no seu Termo de Instalação da seguinte forma:

O debate sobre a Cultura e a Comunicação pretende atender ao interesse de inúmeras entidades, estudiosos e sociedade civil empenhados na democratização e na busca pela participação social na formulação e execução de políticas públicas de Estado. A discussão sobre os diversos temas vinculados à cultura e à comunicação responde aos princípios estruturadores do CDES e estabelece nexos entre cultura, comunicação, política e economia promovendo conceitos relacionados à cidadania e à democracia. O objetivo é debater temas importantes e indicar políticas nos campos da cultura e da comunicação que respondam ao interesse público.
 

Assim que instalada, a CTCC colocou em pauta a criação do Conselho Estadual de Comunicação (CECS-RS). No Rio Grande do Sul, a exemplo de outras unidades da federação, os conselhos estaduais de comunicação, embora previstos nas constituições estaduais adaptadas à Constituição Federal de 1988, mais de duas décadas depois, ainda não foram criados. A única exceção é a Bahia que criou o seu conselho em maio de 2011 (cf.
 “A Bahia sai na frente”).

Tive o privilégio de participar como convidado da reunião da CTCC realizada no dia 22 de setembro que debatia exatamente a
 proposta de criação do CECS-RS.

No Rio Grande do Sul, o governador Tarso Genro assumiu o compromisso com a criação do CECS ainda no seu programa de governo que diz explicitamente: “Criar o Conselho Estadual de Comunicação Social (CECS) com base no Projeto de Lei da criação do Conselho Municipal de Comunicação de Porto Alegre elaborado em 2004. O CECS deverá ter caráter independente e ser responsável pela elaboração de ações e diretrizes fundamentais em relação às políticas públicas de comunicação social e inclusão digital do Estado.

A criação da CTCC se enquadra dentro de uma ampla estratégia de construção política de um projeto de conselho de comunicação que inclui o respaldo do CDES-RS e, portanto, quando encaminhado à Assembléia Legislativa, já seja resultado de consenso por parte de setores amplamente representativos da sociedade gaúcha.

RS versus DF
A anunciada criação do CDES-DF trouxe aos movimentos sociais de Brasília comprometidos com a regulamentação do artigo 261 de sua Lei Orgânica, a expectativa de que o exemplo gaúcho possa ser seguido no Distrito Federal.

Desde fevereiro de 2011, o
 Movimento Pro-Criação do Conselho de Comunicação Social do DF, MPC, apesar do amplo apoio de outras entidades da sociedade civil e, inclusive, de secretários de governo do próprio GDF, não foi ainda capaz de construir o consenso necessário em torno de um projeto de lei propondo a criação do CCS-DF que possa ser encaminhado pelo governador Agnelo Queiroz à Câmara Legislativa do Distrito Federal.

A criação de conselhos de comunicação, em muitos casos, regulamentando artigos que – repito – já constam das constituições estaduais há mais de duas décadas, é um importante passo no sentido de permitir a participação da sociedade na formulação e acompanhamento das políticas estaduais de comunicação social e inclusão digital.
 

A Bahia saiu na frente e o Rio Grande do Sul avança. A ver o que será possível construir em outras unidades da federação.

* Professor Titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.

Artigo originalmente publicado em Carta Maior em 8 de outubro de 2011. 

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mídia, regulação e democracia

Emiliano José * 


Há temas malditos na mídia. Um dos mais, a regulação da mídia. Ou a democratização da mídia. Há uma óbvia interdição do debate. Seja pelo silêncio, que fala muito, seja pelo estardalhaço, quando os grandes meios sentem ameaças rondando seus privilégios. A qualquer movimento da sociedade, que pretenda circunscrevê-los ao Estado de Direito, submetê-los às regras democráticas, eles saltam como se fossem amantes da liberdade, e avessos a quaisquer autoritarismos. Como se regulação democrática combinasse com restrições antidemocráticas. Como se no resto do mundo democrático a regulação fosse exceção, e não regra, como de fato é.


Esse tema maldito é o assunto do professor, sociólogo e jornalista Venício Artur de Lima em seu livro Regulação das Comunicações – História, Poder e Direitos. Venício é dessa espécie de intelectual que começa a rarear – não sei se o denomino engajado, que me parece um termo muito antigo, ou se o chamo de intelectual orgânico, talvez uma conceituação mais acertada, até por suas evidentes aproximações gramscianas, de onde provém o conceito. Poderia ainda recorrer a outro dito de Gramsci – pessimismo da inteligência, otimismo da vontade – para aproximar-me de sua posição diante do mundo.

Se alguém conversar com ele, e se ler o livro, observará sempre essa atitude. Rigoroso no diagnóstico, ele não para nele. Desdobra seu raciocínio na linha da intervenção política, a política pensada em sentido amplo. Não embarca no território das perplexidades, do lamento diante das dificuldades. Quer enfrentar os desafios, e sabe que só podem ser enfrentados pela política, pelo movimento da sociedade. Não há correlação de forças imutável. Pode ser mudada se a sociedade se movimenta. Parece ser sempre esse o raciocínio dele. E esse livro segue o mesmo caminho, persegue essa filosofia, digamos assim. Chamá-lo de um livro militante poderia parecer agressivo num tempo em que a palavra anda meio em desuso. Mas ouso fazê-lo, no sentido de que trabalha, teórica e praticamente, a favor da regulação da mídia, sempre fundado em argumentos sólidos.

Venício nunca se esconde sob o manto da imparcialidade, que, costumo dizer, deve ser apanágio dos deuses. Toma posição, sempre. E nesse livro toma a posição explícita de defender a importância da regulação da mídia como requisito essencial para a afirmação da democracia no Brasil. Há um óbvio déficit democrático no campo da mídia no país. Estamos atrasados em relação ao mundo, inclusive aos nossos parceiros mais próximos da América Latina, como a Argentina, que muito recentemente aprovou a Lei de Meios Audiovisuais, que regulou democraticamente os meios de comunicação, e o fez nos marcos do Estado de Direito.

História. Poder. Direitos. São os títulos que marcam a divisão das três partes do livro. Na primeira, o autor analisa o governo Lula e a política de comunicações, o tratamento do tema na Constituinte de 1988 e, ainda, alguns casos exemplares na relação entre a imprensa e o poder político. Considera que o governo Lula não foi capaz de pôr em prática a maioria das políticas públicas que a sociedade civil – ou “não atores” – avaliava como avanços no processo de democratização. No entanto, reconhece alguns, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, o lançamento do Plano Nacional de Banda Larga e a regionalização das verbas de publicidade oficial.

Na segunda parte, trata das concessões de rádio e TV (serviço público versus interesse privado), do princípio da complementaridade, do coronelismo eletrônico de novo tipo, da relação entre a grande mídia e a nova mídia na política brasileira e, por último, da incapacidade do Estado brasileiro de disseminar informações corretas face ao sistema privado de comunicação quando se trata, por exemplo, de um surto como o da febre amarela silvestre em 2007-2008. Destaco aqui o capítulo sobre o princípio da complementaridade entre o sistema privado, público e estatal, previsto na Constituição (artigo 223), tão pouco observado nas discussões sobre a mídia no Brasil.

Não custa lembrar que a Constituição de 1988 é bastante avançada no capítulo da Comunicação. No entanto, como praticamente nada foi regulamentado, termina por ser letra morta. Ao menos até o momento em que um novo marco regulatório se imponha. Ao final do governo Lula, o então ministro Franklin Martins fez avançar um anteprojeto de marco regulatório, hoje nas mãos do ministro Paulo Bernardo, que prometeu enviá-lo ao Congresso logo que a presidenta Dilma o examine. Ainda não sabemos quando isso ocorrerá. Tal marco é a esperança dos que lutam pela democratização da mídia no Brasil.

Na terceira e última parte, Venício Lima trata de comunicação, poder e cidadania; do direito à comunicação, cuja alternativa seria a pluralidade, e do direito à comunicação no III Programa Nacional de Direitos Humanos (III PNDH), em que analisa a posição dos grupos de mídia e a liberdade de expressão. Destaco aqui a pergunta feita por ele, ao final do livro, sobre quem ameaça quem. Será o III PNDH que ameaça a liberdade de expressão e os grupos dominantes da mídia? Ou a ameaça viria desses grupos dominantes que não aceitam nem os dispositivos constitucionais referentes ao tema e consideram o direito à comunicação uma afronta a seus interesses, e por isso atacam qualquer tentativa de regulamentação?

Venício considera, acertadamente – e com essas formulações finaliza seu belo trabalho –, que o direito à comunicação significa hoje, além do direito à informação, garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de ideias existentes na sociedade, a universalidade da liberdade de expressão individual. Tal garantia deve ser buscada “externamente”, através da regulação do mercado (sem propriedade cruzada e sem oligopólios, dando prioridade à complementaridade do sistema público, privado e estatal). E também “internamente” à mídia, pelo cumprimento dos Manuais de Redação que prometem (mas não praticam) a imparcialidade e a objetividade jornalística.

“E tem também que ser buscada na garantia do direito de resposta como interesse difuso, no direito de antena e no acesso universal à internet, explorando suas imensas possibilidades de quebra da unidirecionalidade da mídia tradicional pela interatividade da comunicação dialógica.”

Digo sem medo de errar: os que se interessam pela democracia em seu sentido substantivo, os que se preocupam com a natureza concentrada da mídia no Brasil, os que esperam aprofundar os caminhos pelos quais se deva transitar para combater o monopólio do discurso jornalístico, os professores e estudantes de comunicação, parlamentares devem ler o livro de Venício. É uma leitura indispensável. Como ferramenta teórica. Como instrumento dessa luta – que é política.

Emiliano José é mestre e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia; professor (aposentado) da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia; jornalista, escritor e deputado federal (PT-BA)

Artigo publicado na revista Teoria e Debate nº 93, de 4 de outubro de 2011

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O PT e a democratização da comunicação

André Vargas (*)

Quando o partido fala em regular a mídia, se refere a criar condições para que a informação saia do controle de meia dúzia de famílias



Nada é mais caro ao PT do que a democracia e seus valores. Está em nosso DNA, em nossa história, em nossa razão de ser e de existir.

Os que ainda não compreenderam isso precisam olhar com mais atenção para o que se passou no 4º Congresso Extraordinário do Partido dos Trabalhadores.

Lá aprovamos, entre outras, uma moção sobre a democratização das comunicações. O debate de relevo, para o qual todo o partido estava focado, no entanto, era a reforma estatutária, motivo da convocação.

Nem nosso mais ferrenho opositor poderá ignorar o grande exemplo de democracia. Criamos regras que ampliam a participação de mulheres, jovens e negros na vida partidária e limitamos o número de mandatos consecutivos para deputados e senadores petistas.

O PT governa o país há nove anos com ampla aprovação do eleitorado; cresce nas prefeituras e nos parlamentos; é o preferido da população nas pesquisas, além de servir de referência para a atuação da esquerda internacional.

Por que então mudar o estatuto? Porque o PT é um partido vivo, democrático, aberto, que tem cúpula dirigente, mas faz a discussão na base -a palavra final vem dos filiados. Os delegados do congresso foram eleitos por voto direto por mais de 500 mil petistas.

Um partido assim não pode ser acusado de autoritário. Os que dizem essa bobagem não conhecem a sigla, não sabem o que significa autoritarismo ou buscam, autoritariamente, criar falsas polêmicas para interditar o debate.

A democratização das comunicações é pauta antiga na legenda. Temos posição consolidada a respeito dela.

Produzimos uma resolução sobre o tema no 3º Congresso, em 2007. Em 2008, fizemos a nossa Conferência Nacional de Comunicação com debates e a presença de líderes petistas e de representantes de movimentos.

Em 2009, participamos da conferência nacional convocada pelo governo Lula.
A moção não brotou da cabeça de meia dúzia de déspotas interessados em cercear, censurar a imprensa, nem surgiu porque algum membro do PT foi atingido de maneira vil pelo noticiário. Ela nasceu de uma construção democrática, e em nada fere direitos como a liberdade de imprensa e de expressão.

Imaginar o contrário disso é uma ofensa não só à história mas também à inteligência dos petistas e dos brasileiros de forma geral.

É impossível controlar a livre circulação de informação num regime democrático, ainda mais em tempos de internet. E nós, mais do que ninguém, somos os últimos interessados nisso.

Quando falamos em regular a mídia, nos referimos a criar condições para que a informação deixe de ser controlada por meia dúzia de famílias, a serviço de poucos interesses. Quando defendemos o Conselho de Comunicação, falamos em cumprir o que determina a Constituição desde 1988.

Entendemos a comunicação como um direito. Estamos na luta para que esse direito se estenda a todos os brasileiros.

E queremos debater o tema, ainda que isso não seja do agrado dos que se apropriam do discurso democrático para impedir o avanço da democracia no Brasil.
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André Vargas é secretário nacional de comunicação do PT e deputado federal pelo Paraná.

Este artigo foi originalmente publicado na seção Tendências/Debates da Folha de S. Paulo de 22 de setembro de 2011.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Viva Paulo Freire, patrono da Educação do Distrito Federal!


Discurso da viúva de Paulo Freire, Ana Maria Araújo Freire, na sessão solene da Câmara Legislativa do Distrito Federal, de 19 de setembro de 2011, que outorgou o título de patrono da Educação do Distrito Federal ao grande educador brasileiro. 

Exmo. Sr. Deputado Patrício,
Presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal -

Prof. Dr. Venício Lima, meu amigo, brasiliense por opção, que hoje e aqui, em data tão significativa relança seu livro Comunicação e Cultura: As Idéias de Paulo Freire -

Autoridade presentes -

Professores e professoras -


Realmente exulto de alegria e de emoções outras por ter sido convidada para estar presente na Casa que representa o povo da Capital da República brasileira, no momento em que ela outorga a meu marido Paulo Freire, in memória,o título inédito de Patrono da Educação do Distrito Federal.

Ao ter acatado a proposta do Presidente da Casa e por estar esta nomeação se tornando públicano dia em que Paulo completaria 90 anos de vida, exatamente acontecendo na cidade que o consagrou no mundo como o criador de um Método de alfabetização revolucionário --- pois, foi aqui, que, em 1963 ele experimentou o que faria em nível nacional, a partir de 1964, infelizmente impedido de realizar seu ousado projeto pelo Golpe Militar – que tinha como objetivo alfabetizar o povo brasileiroresgatando a sua cidadania, o seu amor próprio, é motivo de regozijo para todos nós.

Brasília é, portanto, tanto quanto o Recife e Angicos no RN, um espaço emblemático aonde os oprimidos e analfabetos, objetos da subserviência e exploração dos dominadores seriam conscientizados e assim teriam a possibilidade de se fazerem sujeitos também da história.

Esta festa de hoje é significativa por todos estes motivos e me alegra particularmente que isto esteja acontecendo a partir do fato, que divulguei no Prefácio que eu mesma escrevi para o livro de Venicio Lima, hoje aqui lançado ao público:

 “Quando, ainda em 2010, coloquei no pé da minha página de cartas da internet: “2011 Ano Comemorativo dos 90 anos de Nascimento de Paulo Freire.”, tinha a intenção, obviamente, de mobilizar estudiosos e amigos  de meu marido adizerem a sua palavra sobre ele.

Frase simples e sincera foi a minha intenção de provocar nos verdadeiros freireanos a vontade e a responsabilidade de pensar e de sentir sobre a importância e a grandeza de Paulo. Quer pelos afetos generosos que ele distribuiu em profusão como parte de seu sentimento mais profundo de amorosidade e de comunicabilidade “molhadas” nas suas emoções como parte da sua existência humana mais autêntica, nunca negados, mas sempre aprofundados até o último dia de sua vida; quer pela sua enorme capacidade de nos fazer pensar. Pensar no outro e na outra com o outro e a outra, germe de sua compreensão doexistenciar-se humano e, portanto da comunicabilidade e de sua preocupação com a comunicação como diálogo para transformar o mundo.

A cada manifestação de alguma universidade, de alguma ONG de adesão ao meu “convite” de dividir comigo a alegria da presença de Paulo no mundo, meu sentimento de solidariedade e admiração por meu marido aumenta --- e, felizmente continua aumentando, pois não cessam de me convidar para falar sobre ele, para ouvir sobre ele, para escrever sobre ele, enfim, para estar com ele, em várias partes do Brasil e do exterior.”

Esta homenagem de hoje por seu caráter eminentemente político, que sem dúvidaultrapassou a minha provocação, o meu “convite”, pela repercussão que terá, assim esperamos, nas escolas do Distrito Federal --- dos diretores, aos professores, coordenadores e outros agentes da educação --- coloca o Poder Legislativo, que tem o poder de ditar normas e orientações pedagógicas para a educação de sua população, em situação de atenção e de cuidado com o ato de educar sob sua jurisdição. Entendo este título como um compromisso explícito de que no Distrito Federal não se praticará a educação bancária, tradicional a serviço da perpetuação e privilégio da elite. Que a educação que se praticará aqui partindo dos princípios da teoria de seu Patrono será a educação popular que não segrega ou discrimina as crianças e os adolescentes pela classe social, pela religião ou gênero. Que há na outorga desse título ao homem que mais se preocupou com a alfabetização de seu povo --- que inclusive para isso criou um Método de Alfabetização conhecido como Método de Alfabetização Paulo Freire, a pouco mencionado --- uma deliberação para eliminar o analfabetismo no Distrito Federal.

Para a concretização desta tarefa importante que redundará na melhoria qualitativa e quantitativa do ensino no D.F. será necessária a união dos esforços da Secretaria da Educação, do Ministério da Educação, mas reafirmo, sobretudo, desta Casa que precisará legislar de forma clara e explícita para que não paire dúvidas sobre o porquê, o como, o a favor de quem e de que, o contra que e contra quem a educação se destina e se fará objetivamente.

Pela força emblemática que sabemos ter um título de Patrono da Educação cabe à Câmara do Distrito Federal, repito, criar os meios para que a educação como Paulo a compreendeu e praticou seja possível na Capital Federal. Se não houver esse empenho não se justificará o título. Esse empenho é o que dará validade ao título ora outorgado ao meu marido.

Para Paulo a educação é um ato político, ético-estético, social e crítico-antropológico e não apenas epistemológico. Assim, esperamos que este Ato suscite em todos e todas que trabalham na Rede Distrital a busca pela sua própria formação permanente enquanto agentes para a transformação social com a garantia e o aval desta Casa.

Os educadores e as educadoras desta cidade terão, portanto, o direito de cobrar desta Casa os meios legais para exercerem com proficiência e dignidade a tarefa que lhes cabe. Terão odireito de solicitar melhores salários e melhores condições de trabalho. Os vereadores desta Casa têm, a partir de hoje, o dever de cuidar da educação de seus munícipes e da formação de seus educadores dentro dos sonhos possíveis de uma educação voltada para a libertação e a autonomia de todos e de todas. Têm o dever de eliminar o analfabetismo dos que constroem a pujança e a beleza da cidade concebida por JK, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Os professores e professoras têm que fazer jus à responsabilidade que assumiram ao optarem por serem educadores: terão que ser transformadores da realidade violenta e injusta partejando e ajudando a partejar um mundo melhor, mais justo, verdadeiramente democrático, como queria o seu patrono Paulo Freire.

Esta festa me faz sentir-me junto a Paulo, ao homem que amei e com o qual dividi grande parte de minha vida. Ultrapassa saber que o admiro por ser o maior educador brasileiro de todos os tempos. Esta festa faz do meu corpo um corpo consciente porque todo ele, sentir e pensar, se põe em estado de expectativa de dias mais justos e felizes para as e os brasilienses.

Assim, em meu nome e no de Paulo Freire, meu marido, o meu muito obrigada a esta Casa, de modo especial ao seu Presidente, o Deputado Patrício, pelo honroso título que agora recebo.

Viva o Patrono da Educação do Distrito Federal, o educador maior do Brasil! 
Viva Paulo Freire!!!

19 de setembro de 2011.

Ana Maria Araújo Freire, doutora em Educação pela PUC/SP, viúva e sucessora legal da obra de Paulo Freire. 

Para desocultar verdades escondidas

Venício Artur de Lima (*)

Introdução de Comunicação e Cultura: as ideias de Paulo Freire, de Venício A. de Lima, 2ª edição revista, prefácio de Ana Maria Freire, Editora da Universidade de Brasília/Editora Fundação Perseu Abramo, Brasília/São Paulo, 2011; título do Observatório da Imprensa

Trinta anos após sua primeira edição, o que justificaria a republicação de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire, um livro que explora o pensamento e a prática do educador brasileiro no período anterior à dissolução do chamado socialismo real; anterior às eleições que levaram ao poder vários governos populares na América Latina, na contramão da nossa tradição histórica; anterior à revolução digital que dá origem às imensas transformações tecnológicas nas comunicações? O que a prática e a reflexão posteriores de Freire – produtivo até sua morte em 1997 – acrescentaram sobre comunicação e cultura? O que pensam os pesquisadores, sobretudo os brasileiros, a respeito da contribuição de Freire para os estudos de comunicação?

Os escritos posteriores

Foram poucas as ocasiões, depois de Extensão ou Comunicação? [1969] e Pedagogia do Oprimido [1970], nas quais Freire tratou especificamente o tema da comunicação. Registro duas passagens emblemáticas em que ele faz referencia a formas tecnologicamente mediadas de comunicação, em particular à televisão. A primeira, quando publica, com Sérgio Guimarães, Sobre a Educação, volume 2 [1984]. Vale reproduzir (p. 40):

SÉRGIO: (...) A gente vê que, nos seus vários livros, você não chegou a discutir propriamente as questões [dos meios de comunicação]. Por quê?

FREIRE: Exatamente porque nunca me senti competente, a não ser do ponto de vista de uma apreciação global. Se me perguntas: ‘Paulo, o que é que você acha da televisão?’, eu te respondo: para mim, a televisão não pode ser compreendida em si. Ela não é um instrumento puramente técnico, o uso dela é político. E sou capaz também de fazer algumas propostas com relação ao uso da televisão. Mas, mesmo quando não venho tratando desses chamados meios de comunicação em trabalhos meus anteriores, mesmo quando não falo diretamente sobre eles, eu os considero, por exemplo, dentro do horizonte geral da teoria do conhecimento que venho desenvolvendo nos meus trabalhos sobre educação. Não os trato diretamente, no sentido de que eles não são objeto de um estudo técnico, cientificamente válido. (...) Não me sinto um especialista em torno desse tema. Eu o abordo em linhas gerais.

A segunda aparece em um de seus últimos escritos, Pedagogia da Autonomia [1997], quando trata da necessidade de “desocultar verdades escondidas” na mídia. Diz Freire (pp. 157-158):

Pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da comunicação [de massa], processo impossível de ser neutro. Na verdade, toda comunicação [de massa] é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém, nem sempre claramente referido. Daí também o papel apurado que joga a ideologia na comunicação [de massa], ocultando verdades, mas também a própria ideologização do processo comunicativo. Seria uma santa ingenuidade esperar de uma emissora de televisão do grupo do poder dominante que, noticiando uma greve de metalúrgicos, dissesse que seu comentário se funda nos interesses patronais. Pelo contrário, seu discurso se esforça para convencer que sua análise da greve leva em consideração os interesses da nação. Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão “entregues” ou “disponíveis” ao que vier. (...) A postura crítica e desperta nos momentos necessários não pode faltar. (...) Para enfrentar o ardil ideológico de que se acha envolvida a mensagem [do poder dominante] na mídia (...) nossa mente ou nossa curiosidade teria que funcionar epistemologicamente todo o tempo. E isso não é fácil.

O que se observa nas duas citações acima é que, em ambas, Freire remete o leitor (a) para suas reflexões anteriores sobre a teoria do conhecimento e/ou a necessidade de se pensar “epistemologicamente”, vale dizer, considerar a matriz dialogal como referência normativa para o processo de comunicação, seja ela mediada tecnologicamente ou não.

Até o fim de seus dias, portanto, Freire manteve-se fiel à sua formulação original sobre a comunicação como co-participação de sujeitos que se relacionam dialogicamente em torno do objeto que querem conhecer e, ao mesmo tempo, transformam o mundo no contexto da ação cultural libertadora.

É exatamente a formulação original de Freire sobre comunicação e cultura que constitui o objeto de estudo deste livro.

O que pensam os estudiosos brasileiros

No ensaio “A Pesquisa em Comunicação na América Latina”, ao identificar o que chama de “pais fundadores”, Christa Berger menciona levantamento realizado entre 50 pesquisadores, em 1992, que aponta Paulo Freire como uma das cinco principais influências teóricas deste campo de estudo na região. Freire é lembrado por seu ensaio Extensão ou Comunicação?, escrito no Chile, no qual “está contida a crítica principal aos meios de comunicação de massa: de consistirem em meros instrumentos de transmissão, de tratarem os destinatários como receptores passivos e de impossibilitarem relações dialógicas”. Da mesma forma, autores amplamente reconhecidos e com vasta produção no campo, como o belga Armand Mattelart – com experiência histórica no Chile dos anos 60 e 70 do século passado – e o espanhol/colombiano Jesus Martin Barbero, reconhecem a contribuição de Freire na construção de suas perspectivas teóricas (Berger, 2001, pp. 241-277).

Denise Cogo (1999, pp. 29-36), por outro lado, descreve a presença ativa das idéias de Freire em três áreas: os estudos e a prática da comunicação rural; da comunicação alternativa e/ou popular e dos estudos culturais, nas vertentes de pesquisa sobre o receptor ativo e a leitura crítica da mídia.

Considerando que Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire constitui também um exercício de diálogo crítico, mais ou menos explícito, com as então nascentes tradições dos estudos culturais norte-americana e inglesa, personificadas em James W. Carey (1934-2006) e Raymond Williams (1921-1988), merecem registro especial as ponderações de Cogo sobre a importância fundadora de Freire para esta tradição na América Latina. Afirma ela:

(...) A obra de Paulo Freire ajuda a consolidar as bases para o entendimento das inter-relações entre comunicação, educação e cultura, cujos desdobramentos refletem-se, mais tarde, no desenvolvimento de uma vertente denominada de estudos culturais e comunicação. Herdeira dos estudos culturais ingleses, essa vertente encontra sua especificidade no contexto latino-americano a partir do final da década de 80 através de investigadores como o colombiano Jesus Martin-Barbero e os mexicanos (sic) Nestor Garcia Canclini e Guillermo Orozco Goméz, cujas reflexões apontam para a construção de uma trajetória comum: a compreensão da comunicação no marco do processo das culturas em que a compreensão do fenômeno comunicativo não se esgota em conceitos e critérios como canais, meios, códigos, mensagens, informação. O entendimento da comunicação é reorientado a uma revalorização do universo cultural e do cotidiano dos sujeitos como mediadores dos sentidos produzidos no campo da recepção das mensagens difundidas pelos meios massivos de comunicação.

Outro autor que destaca o potencial da obra de Freire para os estudos de comunicação é Eduardo Meditsch. Em instigante artigo publicado em 2008 ele chama a atenção para “o compromisso com a prática. O pensamento de Paulo Freire não era limitado por esta ou aquela escola teórica em que, eventualmente, se apoiava: seu compromisso primeiro era com a vida real, com a realidade humana que procurava compreender para transformar ou, numa palavra, com a prática”.

Tanto Cogo quanto Meditsch, no entanto, lembram não só as leituras reducionistas e o aprisionamento “no jogo dos conceitos praticado no meio acadêmico”, como “a débil apropriação” que se faz da obra freireana nos estudos de comunicação. Meditsch, em diagnóstico impiedoso sobre esse campo de estudos no nosso país, afirma que foi exatamente o primado fundamental da prática que afastou Freire. Afirma ele:

(...) Os “práticos” nunca se deram conta do potencial da teoria freireana para aperfeiçoar as suas práticas, e a grande maioria nem tomou conhecimento de suas idéias, a não ser por orelhas de livro. Por sua vez, os “teóricos” que leram além das orelhas jamais se sentiram compromissados a aplicar as idéias de Freire nas práticas midiáticas, não apenas por ignorarem solenemente estas práticas, mas também por sentirem um profundo desprezo por elas. Para estes, a prática de que falavam Marx e Freire era apenas mais um conceito a enriquecer sua bagagem teórica, ou era uma prática tão idealizada que se recusava a admitir como legítima a realidade com que “os práticos” se relacionavam. Desta forma, as idéias de Freire, quando levadas em conta em nossa área, foram confinadas ao “balé de conceitos” da comunicologia e “domesticadas” pela lógica acadêmica que seu autor sempre condenou. A sua aplicação no desenvolvimento das práticas da comunicação foi abortada em nosso campo (p. 8).

Diante do rigor dessas observações resta destacar qual, de fato, a contribuição das idéias de Freire para os estudos da comunicação e da cultura nos nossos dias.

Qual a contribuição de Freire hoje?

Além dos aspectos já mencionados na “Introdução”, no capítulo IV – “A Importância de Freire para os Estudos de Comunicação” – e outros ao longo de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire [por exemplo, os pontos de contato com Habermas], a releitura de Freire se justifica hoje pelas seguintes razões:

1. Freire é o principal representante contemporâneo da tradição teórica da comunicação como diálogo. Esta é também a posição de Clifford Christians, um dos mais importantes pesquisadores dessa tradição nos Estados Unidos (cf. Christians, 1988 e 1991). Ainda em 2001 escrevi:

“...se até recentemente esse modelo parecia inadequado para qualquer tipo de aplicação no contexto da chamada “comunicação de massa”, unidirecional e centralizada, hoje a nova mídia reabre as possibilidades de um processo dialógico mediado pela tecnologia. (...) O modelo normativo construído por Freire ganha atualidade e passa a servir de ideal para a realização plena da comunicação humana em todos os seus níveis” (cf. de Lima, 2001; p. 51).

A tradição da comunicação como diálogo ganha renovada importância e potencializa a possibilidade da interação permanente e on line no ato mesmo da comunicação. Freire teorizou a comunicação interativa antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas redes sociais. Como fez o próprio Freire, devemos nos remeter às suas reflexões sobre a teoria do conhecimento, base do conceito de comunicação como diálogo. Lá encontramos uma referencia normativa revitalizada, criativa e desafiadora que será de imensa valia para pensar as novas tecnologias de comunicação e também pensar a sua regulação.

2. Existe um enorme potencial analítico embutido em alguns conceitos introduzidos por Freire que ainda não foram plenamente explorados. Um exemplo eloqüente é certamente o conceito de “cultura do silêncio”, discutido no capítulo III de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire.
Freire fala da nossa herança colonial de “mutismo” e mais tarde da “cultura do silêncio” dos oprimidos, impedidos de ter voz, mergulhados na submissão pelo silêncio. Ele recorre a trecho conhecido do Padre Antonio Vieira (1959) em famoso sermão pronunciado na Bahia, ainda na primeira metade do século XVII (1640), que vale reproduzir novamente aqui:

“Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra – infans, infante – quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (...) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.

Não seria essa uma forma histórica de censura na medida em que a “cultura do silêncio” nega a boa parte da população sua liberdade fundamental de palavra, de se expressar? E quem seria, neste caso, o censor?

No Brasil colônia, certamente o Estado português e os muitos aliados que se beneficiavam da opressão aos povos nativos e aos escravos africanos. A própria sociedade era também “censora”, na medida em que convivia culturalmente com a exclusão de vários segmentos de qualquer participação civil. Por exemplo, as mulheres.

Nada disso é novidade, mas certamente ajudará, sobretudo aos jovens de uma sociedade onde nascem novas formas interativas de comunicação a compreender a verdadeira dimensão de conceitos como censura e liberdade de expressão. Nessa nova sociedade-rede, uma forma disfarçada de censura é o silencio da grande mídia em relação a determinados temas. Considerando que a grande mídia ainda é a principal mediadora e construtora dos espaços públicos, um tema que for deliberadamente omitido estará sendo sonegado e excluído desse espaço, vale dizer, da possibilidade de fazer parte do conhecimento e do debate público.

A cultura do silêncio freireana equivale, de certa forma, ao conceito de “efeito silenciador do discurso” introduzido pelo jurista norte americano Owen Fiss quando argumenta que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o Estado não é um inimigo natural da liberdade (2005, esp. capítulo 1). O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove “a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma” (p. 30).

Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, à pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas do ódio têm sua auto-estima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena política. Em todos esses casos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”, isto é, “a agência que ameaça o discurso não é Estado”. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar “que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos”.

Especificamente no caso da liberdade de expressão, existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso, em oposição à regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (pp. 47-48). O exemplo emblemático dessa última situação é o acesso ao debate público nas sociedades onde ele (ainda) é controlado pelos grandes grupos de mídia.

A liberdade de expressão individual tem como fim assegurar um debate público democrático onde, como diz Fiss, todas as vozes sejam ouvidas. Ao usar como estratégia de oposição política o bordão da ameaça constante de volta à censura e de que a liberdade de expressão corre risco, os grandes grupos de mídia transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo. Ademais, escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público não só [ainda] é pautado pela grande mídia como uma imensa maioria da população a ele não tem acesso e é dele historicamente excluída.

Nossa imprensa tardia se desenvolveu nos marcos do de um “liberalismo antidemocrático” no qual as normas e procedimentos relativos a outorgas e renovações de concessões de radiodifusão são responsáveis pela concentração da propriedade nas mãos de tradicionais oligarquias políticas regionais e locais (nunca tivemos qualquer restrição efetiva à propriedade cruzada), e impedem a pluralidade e diversidade nos meios de comunicação.

A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia, na prática, funciona como uma censura disfarçada. Este é o “efeito silenciador” que o discurso da grande mídia provoca exatamente em relação à liberdade de expressão que ela simula defender.

3. As idéias de Freire constituem a base teórica para a positivação da comunicação como direito humano fundamental.

A necessidade do desenvolvimento e da positivação de um direito à comunicação foi identificada há mais de 40 anos pelo francês Jean D’Arcy, quando diretor de serviços audiovisuais e de rádio do Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas, em 1969. Naquela época ele afirmava:

Virá o tempo em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos terá de abarcar um direito mais amplo que o direito humano à informação, estabelecido pela primeira vez vinte e um anos atrás no Artigo 19. Trata-se do direito do homem de se comunicar (em Fisher, 1984, p. 26).

Onze anos depois, o famoso Relatório MacBride, publicado pela UNESCO (original 1980; 1983, pp. 287-291), reconhecia pioneiramente o direito à comunicação. Diz o Relatório:

Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantêm um diálogo democrático e equilibrado. Essa idéia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das idéias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos. O direito à comunicação constitui um prolongamento lógico do progresso constante em direção à liberdade e à democracia.

Tanto a proposta de D’Arcy como o Relatório MacBride, na verdade, assumiam e consagravam a perspectiva “dialógica” da comunicação que já havia sido elaborada, do ponto de vista conceitual, por Freire no ensaio Extensão ou comunicação?

Freire se diferencia da tradição dialógica dominante ao recorrer à raiz semântica da palavra comunicação e nela incluir a dimensão política da igualdade, da ausência de dominação. A comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento que por sua vez decorre da experiência e do trabalho cotidiano. Ao restringir a comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. A comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de informar e ser informado e o direito de acesso aos meios necessários à plena liberdade de expressão. O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social.
Essa é a base do direito à comunicação.

Pode-se afirmar também que Freire se filia à corrente do humanismo cívico do neo-republicanismo. A concepção implícita de liberdade na sua definição dialógica de comunicação é constitutiva de uma cidadania ativa que equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico, ainda hoje indissociável da retórica histórica de nossas elites dominantes. Para Freire, inequivocamente, o cidadão constitui o eixo principal da vida pública através da participação ativa e do direito à voz. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela.

Essas são algumas das razões que justificam a republicação de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire, 30 anos depois, em homenagem aos 90 anos de nascimento de Paulo Freire. [Brasília, Outono de 2011]

Referências

BERGER, C. “A Pesquisa em Comunicação na América Latina” em Holfeldt, A. et alii, Teorias da Comunicação – Conceitos, Escolas e Tendências, Vozes, Petrópolis, 2001.

CHRISTIANS, C. "Dialogic Communication Theory and Cultural Studies." Norman Denzin, ed., Studies in Symbolic Interaction, vol. 9. Greenwich, CN: JAI Press, 1988.
………………… "Paulo Freire's Emancipatory Strategy," Joseph C. Pitt and Elena Lugo, eds., The Technology of Discovery and the Discovery of Technology. Blacksburg, VA: The Society for Philosophy and Technology, 1991.

COGO, D. “Da comunicação rural aos estudos de audiência: influência da obra de Paulo Freire no ensino e na pesquisa em comunicação social” em Rastros – Revista do IELUSC, Joinville, SC, vol. 1, n. 1, 1999.

DE LIMA, V. A. Mídia: Teoria e Política, Perseu Abramo, SP, 2001.

FISS, O. A Ironia da Liberdade de Expressão, Rio, Editora Renovar, 2005.

FISHER, D. O Direito de Comunicar – Expressão, informação e liberdade,. Brasilienese, SP, 1984.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia, Paz e Terra, SP, 1997.
.................. e GUIMARÃES, S. Sobre a Educação, volume 2, Paz e Terra, Rio,1984.

MEDITSCH, E. Paulo Freire e o estudo da mídia: uma matriz abortada; 2008; disponível aqui, acesso em 31/08/2011.

UNESCO; Um Mundo e Muitas Vozes – Comunicação e Informação na Nossa Época; Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1983.

VIEIRA, S. J., Pe. Antônio. “Sermão da Visitação de Nossa Senhora.” [1640], in Obras Completas de Pe. Antonio Vieira – Sermões,Vol. III, Tomo IX;Lello & Irmão Editores, Porto, Portugal, 1959.
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(*) Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder  e direitos, Editora Paulus, 2011


Texto publicado no Observatório da Imprensa no dia 20 de setembro de 2011.