Venício A. de Lima (*)
Nos 50 anos da UnB, para o prof. José Salomão David Amorim.
No ainda inédito e valioso
depoimento que escreveu sob o título Anos setenta: a UnB e a definição das políticas de comunicação
no Brasil (a ser publicado pela Editora da
UnB), o professor Marco Antonio Rodrigues Dias – ex-professor, chefe do antigo
Departamento de Comunicação (COM), decano de Extensão e vice-reitor – lembra:
“[a posição do Ministro das
Comunicações, Euclides Quandt de Oliveira] começou a despertar o interesse dos
cursos de comunicação pelo país afora e teve um impacto espetacular quando o
ministro, em agosto de 1975, abriu, na UnB, um seminário latino-americano de comunicação, na presença dos
maiores especialistas e estudiosos da comunicação naquela época em vários
países da América Latina” (grifo nosso).
Embora muito mais seja dito
sobre a importância histórica do ministro Quandt de Oliveira e do grupo de
professores-pesquisadores em comunicação da UnB, à época, o professor Marco
Antonio nada mais acrescenta sobre o “seminário latino americano de
comunicação”.
No portal da UnB, a página da
Faculdade de Comunicação faz apenas um breve registro do referido seminário:
Aos poucos o Departamento
começa a dar os primeiros passos fora do campus. O primeiro foi o inicio, em
julho de 1974, do Programa de Mestrado (...). O outro acontecimento importante
foi a realização, em 1975, na UnB, do I Seminário Latino-Americano de Comunicação,
sobre “Comunicação e Desenvolvimento”, do qual participaram especialistas de
renome nacional e internacional (ver aqui).
Este artigo pretende registrar
o significado singular que o referido seminário teve (1) como referência para o
debate sobre políticas públicas de comunicações; e (2) na pesquisa da
comunicação, tanto no Brasil como na América Latina.
O contexto
dos anos 1970
Primeiro é preciso lembrar que
vivíamos tempos sombrios. Era o início do governo do general Ernesto Geisel
(1974-1979) com promessas de abertura política, resistência dos militares da
chamada “linha-dura” e violenta repressão aos movimentos de oposição à
ditadura. O clima de insegurança se refletia, por óbvio, na atividade
acadêmica, sobretudo, na Arquitetura e na Comunicação, historicamente vistas
pelos órgãos de segurança – internos e externos – como áreas “problemáticas” na
UnB.
Em artigo anterior,
relatei um encontro acontecido, por iniciativa da Globo, na UnB (1975), entre
professores do COM e altos dirigentes do poderoso grupo de mídia, entre eles
Walter Clark (diretor geral), Luiz Eduardo Borgerth (diretor), Otto Lara
Resende (assessor da presidência), infelizmente já falecidos. O encontro tinha
por objetivo “trocar idéias sobre as comunicações no Brasil”.Lembrei, então, o
contexto em que o encontro ocorreu, pontuando, dentre outros:
** O Ministro das Comunicações
(Quandt de Oliveira) vinha fazendo uma série de críticas públicas à televisão
brasileira, todas de grande repercussão. Uma delas, a aula inaugural no curso
de comunicação do CEUB, Centro de Ensino Unificado de Brasília, sobre “A
televisão no Brasil” (17/2/1975). Na sua fala ele destacava os “perigos do
monopólio” tanto de canais, quanto de audiência, quanto na programação
“alienígena”.
** Estava em andamento a
criação da Radiobras [Lei n. 6301 de 15/12/1975] que era vista com desconfiança
pela Globo temerosa de que se transformasse em destinação preferencial de
verbas publicitárias do governo.
** Estava em discussão, dentro
do governo, um pré-projeto de regulação da radiodifusão que deveria substituir
o [já àquela época] superado Código Brasileiro de Telecomunicações [Lei 4.
117/1962].
** O Departamento de
Comunicação da UnB era uma unidade acadêmica que produzia pesquisa crítica
sobre a radiodifusão brasileira e acabara de elaborar um pioneiro projeto de
unificação das televisões públicas que recebeu o nome de SINTIS, Sistema
Nacional de Televisão de Interesse Social. Além disso, circulava que alguns de
seus professores tinham acesso ao ministro das Comunicações e o abasteciam com
dados nos quais ele fundamentava sua posição, direta e/ou indiretamente,
contrária à hegemonia da Globo.
No campo das comunicações, este
foi também o período em que começava a ganhar corpo internacionalmente o debate
sobre as políticas nacionais de comunicação e a Nova Ordem Mundial da
Informação e da Comunicação (Nomic), que provocou a crise que resultou na saída
dos EUA (1984) e da Inglaterra (1985) da Unesco (ver “Ideia é relançada 30 anos depois“).
O COM havia iniciado no ano
anterior (2º semestre de 1974) o seu programa de mestrado em Comunicação,
apenas o quarto a funcionar no país – depois da USP, da PUC-SP e da UFRJ.
Apesar de conter um componente de desenvolvimento rural ligado à presença de
pesquisadores externos que colaboraram no seu planejamento, o convite a
professores visitantes de diferentes orientações teóricas – e o fato de estar
em Brasília – fez com que o viés das políticas públicas de comunicação também
se vinculasse ao programa. Ademais, já existia um forte conteúdo crítico no
COM, expresso na posição antioligopolista e de defesa do conteúdo nacional na
radiodifusão brasileira sustentada publicamente por vários de seus professores.
O Seminário
Latino Americano de Comunicação
A idéia de se realizar um
grande evento acadêmico na área de comunicação havia surgido originalmente para
marcar o início do funcionamento do programa de mestrado. Como isso não fora
possível, quando o programa completava seu primeiro ano de funcionamento,
organizou-se o Seminário Latino Americano de Comunicação (SLAC)que aconteceu na
semana entre 24 a 29 de agosto de 1975, no Auditório Dois Candangos.
O pouco tempo de funcionamento
do mestrado tinha deixado clara a quase inexistência de reflexões locais e
regionais sobre as questões de comunicação. Naquela época, por exemplo, o
trabalho pioneiro de crítica ao extensionismo rural e de teorização sobre a
comunicação dialógica que Paulo Freire havia começado a desenvolver no Chile
era praticamente desconhecido entre nós. Tornava-se imperativo, portanto,
valorizar as experiências latino-americanas e criar um referencial prático e
teórico que expressasse a realidade social e cultural da região.
Um dos objetivos do SLAC era exatamente
reunir os principais pesquisadores da comunicação na América Latina e refletir
criticamente sobre a pesquisa e o ensino da comunicação, sobretudo, em nível de
pós-graduação. Foram convidados e estiveram no SLAC Antonio Pasquali
(Venezuela), Juan Dias Bordenave (Paraguai), Luiz Ramiro Beltrán (Colômbia),
Manoel Calvelo Rios (Peru) e Marco Ordoñez (Equador). Veio também Alberto
Obligado Nasar, argentino, à época subdiretor geral de informação da Unesco.
Entre os brasileiros, além dos professores do COM, estiveram presentes Gabriel
Cohn (USP), Muniz Sodré (UFRJ), Eduardo Diatay (UFCE) e representantes do CNPq
e da Embrapa que discutiram os desafios da pós-graduação nas ciências humanas
em países como o Brasil.
Estiveram também presentes o
ministro das Comunicações e um representante da Secretaria de Planejamento da
Presidência da República para discutir o II Plano Nacional de Desenvolvimento.
O discurso de abertura do SLAC,
pronunciado pelo ministro das Comunicações, teve grande repercussão pública. Quandt
de Oliveira era o símbolo de importantes contradições que, àquela altura,
existiam no interior do regime autoritário. Ao contrário de seus antecessores,
questionava diretamente o controle da mídia, sobretudo da radiodifusão, por uns
poucos grupos privados. Em sintonia com questões que estavam sendo levantadas,
à época, na Unesco, perguntou:
“Possuímos meios de comunicação
de massa em quantidade suficiente para atender as nossas necessidades? De que
maneira estão distribuídos os meios de comunicação de massa? Essa distribuição
é homogênea em todo o país ou revela desequilíbrios que devem ser corrigidos?
Finalmente, qual é a natureza do conteúdo dos meios de comunicação? Este
conteúdo é relevante para o desenvolvimento do país ou é composto de material predominantemente
trivial, banal?”
A resposta às questões
levantadas pelo ministro, por óbvio, era negativa e foi oferecida no próprio
seminário. O professor Marco Antonio, por exemplo, que falou dois dias depois,
sugeriu:
“A definição de uma política
nacional de comunicação é crucial, pois, de acordo com sua motivação, os
veículos de massa poderão servir, prioritariamente, a uma finalidade social e
cultural ou poderão ter objetivos meramente comerciais, servindo apenas de
instrumentos de marketing para melhorar as vendas de determinados produtos. E,
neste caso, falar de produção nacional ou estrangeira deixa de ter sentido.
(...) O estudo sobre o novo Código Postal e de Telecomunicações é também de
fundamental importância. Espera-se que a nova legislação a ser proposta pelo
Executivo e discutida pelo Legislativo dê força de lei a princípios e medidas
que garantam o uso social dos meios de comunicação. Entre estas, destacam-se:
(1) consolidação da adoção do sistema misto de radiodifusão, devendo colaborar
todos, governo e grupos privados, no esforço para atingir o desenvolvimento
social; (2) medidas que visam a enfraquecer a tendência da concentração da
propriedade e da produção e (3) defesa dos valores da cultura nacional, através
da obrigatoriedade de porcentagem significativa de produção nacional na
programação.”
Inexplicavelmente, a coletânea
dos textos apresentados ao longo do SLAC, que deveria ter sido publicada em
livro, se perdeu no COM. Hoje, salvo uns poucos originais, não há registro da
riqueza das contribuições oferecidas.
A criação
de uma associação de pesquisadores
Outro resultado do SLAC foi o
nascimento do embrião da Associação Latino Americana de Pesquisadores da
Comunicação (Alaic), que viria a ser criada três anos depois em Caracas, na
Venezuela.
No último dia do SLAC, 29 de
agosto, reuniram-se os pesquisadores Antonio Pasquali (Ininco, Venezuela), José
Salomão David Amorim (Abepec, Brasil), Juan Dias Bordenave (Iica), Luiz Ramiro
Beltrán (Cida, Colombia), Lytton Guimarães (UnB), Manoel Calvelo Rios (FAO,
Peru), Marco Ordoñez (Ciespal, Equador), Ubirajara da Silva (UnB), Venício A.
de Lima (UnB) e Vicente Alba (IICA e Embrapa, Brasil) e decidiram criar o
“Comitê Latino Americano de Pesquisadores em Comunicação Social”. A secretaria
executiva seria na sede do Ciespal, o presidente o professor Salomão Amorim e o
secretario executivo, Marco Ordoñez.
Na ocasião foi redigida uma
ata, subscrita tanto pelo professor Salomão quanto por Marco Ordoñez, que
diagnosticava a situação da pesquisa em comunicação na América Latina pela
“falta de planificação, de coordenação e de intercâmbio”. Essa situação,
portanto, “configura a necessidade de se criar uma entidade destinada a sanar
estes inconvenientes”. Além disso, a Ata registrava, dentre outros, os
seguintes propósitos do Comitê:
** racionalizar e tornar
congruentes os trabalhos de investigação que, neste setor, se realizam na
América Latina;
** planificar, na medida do
possível, a pesquisa regional em comunicação social;
** favorecer o intercâmbio de
experiências e determinar, de comum acordo, sistemas de prioridades;
** favorecer, por todos os
meios, a formulação, execução e avaliação das políticas nacionais de
comunicação.
É interessante observar que, no portal da própria Alaic, não se encontra qualquer
informação sobre a história de criação da entidade.
Por outro lado, em entrevista
concedida em 1999, a ex-presidente da Alaic, professora. Margarida Kunsch,
afirma:
“A Asociación Latinoamericana
de Investigadores de la Comunicación – Alaic – foi fundada em novembro de 1978,
em Caracas, Venezuela. Ela surgiu graças à iniciativa de um grupo de
pesquisadores (Antonio Pasquali, Luis Ramiro Beltrán, Jesus Martín-Barbero,
Alejandro Alfonso, Marco Ordoñez, entre outros), que vislumbraram a importância
e a necessidade da comunidade acadêmica de comunicação na América Latina se
articular” (ver aqui).
Não há, portanto, qualquer
menção ao Comitê ou ao encontro em Brasília, três anos antes, do qual
participaram pelo menos três dos pesquisadores explicitamente mencionados como
“pais” da iniciativa, isto é, Antonio Pasquali, Luis Ramiro Beltrán e Marco
Ordoñez.
Lições para
o presente
O SLAC foi pioneiro e ajudou a
introduzir as políticas nacionais de comunicação como pauta de interesse
público. Trinta e sete anos depois, elas continuam mais que necessárias e
boicotadas na agenda da grande mídia. Questões e propostas colocadas na década
de 1970, apesar das normas e princípios inseridos na Constituição de 1988,
persistem sem solução. Na verdade, políticas nacionais de comunicação ainda
constituem um tabu. Basta considerar que não temos, em 2012, um projeto de
marco regulatório para o setor de comunicações.
Da mesma forma, os propósitos
do Comitê Latino Americano de Pesquisadores continuam incrivelmente atuais. A
regulação democrática da mídia que vem ocorrendo em vários países nossos
vizinhos precisa ser estudada aqui e o intercâmbio e a integração da pesquisa
nunca foram tão necessários.
Recorro ao que escrevi em
relação a outra memória singular do COM-UnB (ver “Relato de uma experiência, 40 anos
depois“): a experiência – assim como a memória, diria Pedro Nava – é
um farol que ilumina para trás. Mesmo assim, o registro de ambas faz parte da
reafirmação de nossa própria identidade e se torna necessário, pelo menos, para
nós mesmos.
Chefe do COM à época da
realização do Seminário Latino Americano de Comunicação,ex-professor e
ex-coordenador do programa de mestrado em Comunicação, busco resgatar não só a
memória de um importante evento esquecido, como, sobretudo, prestar uma
homenagem aos colegas, funcionários e alunos que trabalharam duramente para que
tudo isso acontecesse em tempos e circunstâncias adversas.
Essa é também, acredito, uma
maneira de celebrar os primeiros cinquenta anos da Universidade de Brasília.
***
[Venício A. de Lima é professor
titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, entre
outros livros, de Regulação
das Comunicações – História, Poder e Direitos; Paulus,
2011]
* Artigo originalmente
publicado pelo Observatório da Imprensa em 20 de março de 2012.