Por Venício A. de
Lima em 17/04/2012 na edição 690 do Observatório da Imprensa
As informações muitas vezes são desencontradas, mas com uma boa dose de
paciência e de persistência, quem visitar Salvador hoje ainda poderá conhecer
algumas preciosidades.
Exemplos:
** As fundações originais do Colégio dos Jesuítas (1553), depois
Hospital Real Militar da Cidade do Salvador,localizado no Largo do Terreiro de
Jesus. O prédio, onde ainda hoje funciona a Faculdade de Medicina da
Universidade Federal da Bahia, foi construído sobre essas fundações seculares
que lá permanecem, quase 500 anos depois.
Foi aí que o menino Antonio Vieira, nascido em Lisboa, mas logo
transferido para a Bahia – onde seu pai, Cristóvão Vieira Ravasco, era escrivão
do Tribunal da Relação – se transformou no padre jesuíta que marcou o século 17
como destemido defensor dos povos nativos e dos “cristãos novos”, conselheiro
de reis, diplomata e “imperador da língua portuguesa” (Fernando Pessoa).
** Alguns locais onde Vieira fez seus mais importantes sermões,
parcialmente preservados. É o caso da capela restaurada da Santa Casa de Misericórdia
(1549-1552) e do púlpito da antiga Igreja de Nossa Senhora da Ajuda –
construída em 1549, reformada em 1579, demolida em 1912 e reconstruída em 1923.
** Vestígios da antiga Quinta do Tanque ou Quinta dos Padres, hoje
conhecida como Quinta dos Lázaros, na Baixa de Quintas, onde funciona o Arquivo
Público da Bahia. Aí Vieira passou os últimos 16 anos de sua vida preparando
seus sermões para publicação.
** A cela onde teria falecido e o local onde teria sido enterrado Vieira
na Catedral Basílica Primacial de São Salvador, antiga capela do Colégio dos
Jesuítas(1566/1656), no Largo do Terreiro de Jesus.
Antonio Vieira x John Milton
Esse retorno ao passado se justifica.
Um instigante desafio para os interessados nas dificuldades ainda hoje
existentes na compreensão e na prática dos conceitos de liberdade de expressão
e liberdade da imprensa no Brasil é colocar em perspectiva histórica comparada
a realidade do Brasil e da Inglaterra, a partir do século 17. Foi na terra e na
época de Hobbes, Milton e Locke que teve início a defesa moderna da liberdade
de expressão e da liberdade de imprimir “sem licença previa”.
Um bom começo para explorar esse desafio seria estudar as circunstâncias
da vida e da obra de dois ilustres representantes do pensamento seiscentista: o
padre Antonio Vieira (1608-1697), no Brasil, e John Milton (1608-1674), na
Inglaterra.
Existe
pelo menos um estudo que compara Vieira e Milton, mas se refere apenas às
características proféticas e utópicas do pensamento de ambos (Nuno M. D. P.
Ribeiro, The
second coming: prophecy and utopian thought in John Milton and Antonio Vieira; disponível aqui).
Estudar comparativamente Vieira e Milton é ainda apenas um projeto. Por
hora, registro que as “circunstâncias” de boa parte da vida de Vieira podem ser
encontradas na Bahia seiscentista, mesmo século do advogado e poeta Gregório de
Matos (de quem Vieira tornou-se amigo no retorno ao Brasil, em 1681). O jesuíta
viveu na Bahia por mais de 41 anos, na sua infância, juventude e início da
maturidade (1614-1641), e, depois, na sua velhice (1681-1697). Na Bahia ele
pronunciou alguns dos seus mais importantes sermões.
Referências
iniciais seriam (1) o sermão da Visitação de Nossa Senhora, proferido por
Vieira na Santa Casa de Misericórdia, em julho de 1640; e (2) o discurso ao
parlamento inglês de Milton, conhecido comoAreopagitica, escrito em novembro de 1644 e publicado
em português pela primeira vez no Correio Braziliense de
Hipólito da Costa, em 1810.
São textos separados por apenas quatro anos que, todavia, sinalizam um
enorme abismo civilizatório.
Vieira, fazendo um balanço geral da situação em que se encontrava a
colônia, afirmava, na presença do recém nomeado vice-rei, o marquês de
Montalvão, que o Brasil estava na mesma condição do infante, isto é, aquele que
não fala e que “a maior ocasião de seus males” era exatamente “tolher-se-lhe a
fala”.
Milton, por outro lado, dirigia-se ao Parlamento Britânico defendendo a
plena liberdade individual de expressão e de imprimir sem licença prévia, em
nome da razão e da liberdade, condições para que cada cidadão pudesse exercer
seu livre arbítrio.
No Brasil colônia do início do século 17 não havia qualquer
possibilidade de se imprimir. Como se sabe, a primeira tipografia (imprensa) só
chegou aqui com o príncipe regente dom João, em 1808. Por outro lado, na
Inglaterra do século 17, confirmavam-se valores e direitos do humanismo cívico
republicano que iriam se consolidar ao longo dos séculos como conquistas
humanas fundamentais.
Lições da história
O desafio fica apenas identificado.
Um
mergulho no passado, a comparação com o que ocorria em outros países e a
constatação de nosso atraso relativo ajudarão a entender as imensas
dificuldades de superação do gap histórico existente desde a nossa colonização. Na verdade, esse gap parece ainda condicionar muito das resistências que interditam o debate
e impedem que avancemos no sentido de dar voz àqueles que têm tido sua voz
tolhida, como afirmou Vieira, desde o século 17.
Apesar de quatrocentos anos, muito mudou, mas muito ainda permanece
semelhante.
***
Venício
A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB
(aposentado) e autor, entre outros livros, de Regulação das Comunicações – História, Poder e Direitos; Paulus, 2011
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